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O dogma da maternidade
Não deixa de me espantar que a maternidade seja um tema que causa uma celeuma e ira tais, que abordar o assunto é como entrar numa autoestrada direta em direção ao insulto. Dos buracos da existência, saltam zangas anónimas, caretas e feiuras que se misturam com quotidiano e se mascaram de urbanidade, mas que, de facto, não são mais que feridas abertas em forma de humano. 

Poder questionar a maternidade é colocarmo-nos numa certa vigilância benigna. Por que será que as mães não podem ser escrutinadas? De onde vem esta santidade, esta inimputabilidade moral que, a um só tempo, impede a crítica e afirma um lugar sacralizado?

Numa comunidade séria, o questionamento, quando assente no cuidado ao outro, deveria ser encorajado. Falo sobre mães porque ser mãe é muito difícil, não tanto pelo que se sabe mas, justamente, pelo que está oculto, dentro de cada mulher. Poder inquirir sobre a qualidade do maternar deveria contribuir para que cada mulher se torne mais competente naquilo que se comprometeu: responsabilizar-se pelo ser humano que tem à sua guarda. E isso deveria passar, sem reserva, pelo questionamento são, generoso e benévolo. 

Que essa indagação seja recebida com fúria, diz-me que há quem não entenda que a maternidade não dá nem tira nada a ninguém e que, sobretudo, não faz de uma mulher uma mãe. É a qualidade do vínculo que faz o materno, e é a maturidade do humano que se permite a ser vista e questionada. 

Não faltam mulheres doentes, infantis, descompensadas, perversas, perturbadas e é, justamente, por isso que têm de ser vistas para poderem ser ajudadas. Ser mulher e mãe não é estar isenta de nada, pelo contrário. É aceitar uma tarefa que pode ser mais leve quanto mais nos deixarmos ser frágeis naquilo a que nos propusemos.

As tribos sabem bem como fazer isto. Não tinham as condições do mundo moderno mas sabiam bem o que fazer para acolher as crianças umas das outras e para amparar as dificuldades das mães. 

Hoje em dia, a maternidade é uma competição sem enunciados. Ganha quem gritar mais alto e quem mais forte bater no peito. É tudo sobre as mães, sobre a sua ferida narcísica, sobre o que não se pode perguntar, comentar, mas que está mais à vista que a cauda de um gato. 

É destas feridas que temos de cuidar. Destes golpes feitos por outras feridas, por outras mães e pais, uns serão cortes simples, outros, úlceras profundas, mas todas fruto deste lugar de que não estamos a saber cuidar realmente. 

Não questionar a maternidade é não questionar o sítio de onde viemos. E para isso não estou disponível. Antes o insulto, que não deixa marca. 

Imagem:
"Mãe e Filho à beira-mar"
Pablo Picasso








Texto de autoria: Sílvia Baptista

Data: 2024-06-30






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