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A banalização do Narcisismo
Já todos nos lançámos a cunhar alguém como "narcisista", o mais popular e vago dos diagnósticos. Qualquer traço de autoestima, ambição ou autossuficiência é rapidamente rotulado como um sinal de narcisismo, como se o conceito, por si só, se referisse a um desvio moral ou a uma falha de caráter. O que é importante saber, e que a Psicanálise estuda há quase 1 século, é que o narcisismo é um estágio fundamental do desenvolvimento psíquico e um componente necessário para a constituição do Eu.

Freud foi um dos primeiros a descrever o narcisismo, entendendo-o como uma fase essencial do desenvolvimento psíquico infantil. A criança, nos seus primeiros anos, é naturalmente narcísica: ela percebe-se como o centro do mundo e precisa dessa ilusão para ir criando um senso de identidade. Esse narcisismo primário não é patológico, pelo contrário, é parte do processo normal de amadurecimento.

A capacidade de gostar de si mesmo, de dar conta do seu valor próprio e de reconhecer a sua singularidade, são aspectos saudáveis do narcisismo. A confusão surge quando se confunde o narcisismo estrutural – aquele que faz parte de todos nós – com a Perturbação de Personalidade Narcisista, que, essa sim, é uma condição clínica.

No paleio popular, a palavra "narcisista" tornou-se um insulto e é usada indiscriminadamente para descrever pessoas autoconfiantes ou as que, simplesmente, sabem estabelecer limites. Porém, a Perturbação Narcisista é muito mais complexa do que a semântica parece indicar: ele envolve um padrão persistente de grandiosidade, necessidade excessiva de admiração e falta de empatia, que compromete significativamente os relacionamentos e a vida emocional do indivíduo. Como se vê, não só é mais complexo como é passível de causar sofrimento.

Viver neste tempo, em que a imagem e o desfralde geral do que é privado passou a ser a norma, “ser narcisista” é pouco mais que uma explicação rápida e vazia para um tipo de comportamento e vivência que antes eram vistos como desejos de reconhecimento. Mas será que todos que gostam e praticam o olhar ao espelho, ou que se preocupam com sua imagem, são narcisistas no sentido patológico? A resposta psicanalítica é clara: não.

O narcisismo saudável permite que tenhamos autoestima, que possamos desejar e sermos desejados, que nos sintamos dignos de amor e admiração. O problema não está no narcisismo em si, mas na nossa incapacidade de distinguir o que é estrutural e o que é patológico. De colocarmos tudo no mesmo saco, que é o da necessidade imperiosa de darmos um nome ao que não conhecemos.

Quando tudo é classificado como narcisismo, perdemos a complexidade da psique humana. Uma pessoa com autoestima elevada não é, necessariamente, um narcisista patológico. Uma pessoa que termina um relacionamento porque não se sente valorizada não é um manipulador. Uma pessoa que se prioriza não está a exercer uma "violência narcísica". A banalização deste conceito não distorce e esvazia apenas a compreensão do fenómeno, mas desumaniza aqueles que, de fato, sofrem com o transtorno.

A Psicanálise ensina-nos que o Humano é tecido de contradições e ambivalências: podemos ser vaidosos e empáticos, autossuficientes e vulneráveis, seguros e carentes de reconhecimento. O que ela propõe não é a eliminação do narcisismo – o que seria impossível - mas compreender os seus limites e manifestações.

Pegando neste axioma que se mantém, para mim, verdadeiro: se tudo é narcisismo, então nada é. E sem nuances, sem tons, sem contraditórios, sem uma busca incessante por uma unanimidade e lógica que nem sempre existe, perdemos a capacidade de olhar para o Outro com a complexidade que ele merece.




Texto de autoria: Sílvia Baptista

Data: 2025-02-12






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